quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Diferenças, semelhanças e a construção da paz



Sempre que encontro os amigos mais próximos, o assunto viagem acaba surgindo em nossas conversas. É natural já que todos sabem que costumo aproveitar as férias para visitar novas paisagens, outros povos e, claro, diferentes culturas. Por obra do destino (ou dádiva divina!), há aproximadamente 20 anos conheci primos na Espanha e amigos na Alemanha que vêm me proporcionando férias inesquecíveis ao longo desse período. Em meus deslocamentos por terras alheias nesses anos todos, tive a oportunidade de colecionar experiências fantásticas, as quais, de alguma forma, moldaram minha maneira de ser e de encarar o mundo e a própria vida.
No início, o que mais me estimulava a sair do conforto do lar e a me tornar um "forasteiro", ainda que por pouco tempo, era a possibilidade de conhecer novas culturas. Sempre achei fascinante identificar, em cada local, hábitos, costumes e valores distintos de tudo que encontro em minha cidade ou em meu país. Nas primeiras viagens, essa foi minha maior motivação para encarar o desconhecido e o inesperado, no Brasil e no exterior. Mas não demorou muito, ou tantas viagens, para eu mudar o foco e descobrir que o maior prazer dessas aventuras longe de casa, dos familiares e dos amigos não residia na percepção das eventuais diferenças que distinguem povos e culturas distantes, mas na constatação das semelhanças e de nossos traços comuns, que certamente vão além das aparências e de padrões locais de comportamento.
Costumamos desconfiar ou ter medo de tudo que nos é estranho. É normal pois faz parte da natureza humana. Por isso mesmo, procurar conhecer (e entender) o outro, seja ele o vizinho, o porteiro do prédio, o jornaleiro ou ainda o estrangeiro do país mais distante, é o melhor caminho para o entendimento, o respeito mútuo e a construção da paz.


domingo, 2 de novembro de 2014

Brasil, uma nova república bolivariana?



Fico assustado vendo tanta gente nas redes sociais, por certo militantes petistas não suficientemente satisfeitos com a vitória da Dilma, indignada e intolerante com a reação da oposição ao resultado das eleições, agora, mais do que nunca, alerta e atuante (excluindo, é claro, a estupidez dos pedidos de impeachment da Dilma e de intervenção militar no país (!?!?!), motivos da manifestação ruidosa ocorrida ontem em São Paulo). São democráticos? Duvido muito, mas duvido muito mesmo!!
Alguns nem se dão ao trabalho de disfarçar o desejo de transformar o Brasil em mais uma republiqueta bolivariana, a exemplo de Venezuela e Equador, onde as oposições são reprimidas e caladas por todos os meios disponíveis (asfixia econômica da imprensa crítica, prisões, assassinatos etc.).
Não são adversários da direita, do Aécio ou dos projetos tucanos. São nitidamente inimigos da democracia e, por extensão, do próprio país. A sociedade brasileira, principalmente a (quase) outra metade da população que não votou no PT, da qual convictamente faço parte, deve estar vigilante para evitar qualquer possibilidade de retrocesso político.


segunda-feira, 20 de outubro de 2014

O genial, o louco e o triunfo da arte



Aprecio música clássica há pelo menos 30 anos, e cada vez que ouço uma obra de Richard Wagner, como fiz ontem à noite assistindo ao concerto "The Ring without Words", síntese sinfônica extraída da tetralogia "O Anel do Nibelungo" pelo maestro Lorin Maazel, tenho a forte impressão de que, por mais que se reconheça e valorize o talento extraordinário de outros mestres (Bach, Mozart, Beethoven etc.), jamais houve um compositor tão genial como Richard Wagner. É um gigante da música que pode figurar, sem favor algum, ao lado dos maiores gênios da humanidade, como Leonardo da Vinci, Michelangelo e Einstein, tamanha a importância de seu legado, fonte inesgotável de prazer e inspiração para gerações seguidas de diletantes, músicos e compositores.
Curiosamente, o homem dotado dessa assombrosa genialidade demonstrou, ao longo de quase 70 anos de vida, ter tido um caráter comprovadamente deplorável. Antissemita, Wagner publicou diversos trabalhos criticando a influência judaica na sociedade alemã. Além disso, egoísta e oportunista, era capaz de fazer qualquer coisa para promover suas obras, não poupando nem os amigos mais próximos, incluindo o próprio rei Ludwig II, da Baviera. Conhecido como o "Rei Louco", Ludwig II idolatrava Wagner e, manipulado pelo compositor, contribuiu para arruinar as finanças do reino financiando seus projetos megalomaníacos, como, por exemplo, a construção do Teatro do Festival de Bayreuth, dedicado exclusivamente à encenação das óperas wagnerianas, evento anual que continua reunindo fãs ardorosos de Wagner espalhados pelo mundo.
Lamento apenas que, hoje em dia, não muitos se disponham a descobrir o universo maravilhoso que se descortina ao ouvir as extensas e complexas obras do compositor alemão. Elas certamente representam o triunfo da arte sobre as imperfeições humanas e a finitude da vida.


Montagem do "Anel do Nibelungo" no Metropolitan, em Nova York


Teatro de Bayreuth, na Baviera - Alemanha



quinta-feira, 11 de setembro de 2014

"O Peso da Responsabilidade" e a direita envergonhada no Brasil



Em tempos de direita envergonhada no Brasil, que se esquiva covarde e astutamente de se posicionar sobre suas próprias doutrinas, valores e propostas concretas para o país (com poucas exceções, como os casos do radical Jair Bolsonaro e de algumas lideranças religiosas), nada melhor do que ler "O Peso da Responsabilidade" (lançado originalmente em 1998, mas só agora publicado no Brasil), livro escrito pelo brilhante historiador Tony Judt, já falecido, sobre três intelectuais franceses - Albert Camus, Raymond Aron e Léon Blum - que mantiveram publicamente suas convicções, nadando contra a maré comunista (ou marxista) que encantou gerações de intelectuais ao longo do século XX. 
Cabe destacar que já li várias obras do autor e, como ele, sempre tive uma grande simpatia pela social-democracia experimentada em boa parte da Europa no período de pós-guerra, em especial na Escandinávia, na França e na Alemanha. Esse sistema de governo, responsável pela implementação do famoso estado de bem-estar social, proporcionou uma distribuição de renda sem precedentes entre as populações do continente, dentre outros benefícios sociais como saúde, educação e serviços públicos de qualidade. Infelizmente, dizem os especialistas, o bem-estar social que ajudou a formar gerações inteiras de europeus na segunda metade do século XX não tem mais lugar no mundo de hoje, cada vez mais globalizado e competitivo. Tenho minhas dúvidas. 
Esclareço, porém, que não acredito que seja possível construir um país verdadeiramente justo, capaz de oferecer as melhores oportunidades de realização humana, quando o Estado tutela política, social e economicamente seus cidadãos. Portanto, também na esfera da vida privada, entendo que deve haver um equilíbrio entre fomento público e esforço pessoal ou individual. 
Em função de tudo isso, penso que a leitura de "O Peso da Responsabilidade", de Tony Judt, serve, no mínimo, como uma boa e oportuna reflexão sobre alguns temas políticos controversos, às vésperas da realização de novas eleições no Brasil.

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

A obra-prima de Nino Rota para o cinema



"O Leopardo", filme baseado no romance homônimo de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, corresponde, possivelmente, à mais bem-sucedida parceria do cineasta Luchino Visconti com o compositor Nino Rota. O clássico do mestre italiano de tantas obras magníficas, tais como "Roco e seus irmãos", "Morte em Veneza" e "Ludwig", teve a sorte de contar com Nino Rota em seu melhor momento no cinema. 
Elaborado em forma de sonata, como uma verdadeira sinfonia, o score composto por Rota para o filme reúne tudo que uma trilha sonora  deve oferecer, e muito mais! Lírica, delicada, elegante, majestosa e, quando necessário, vibrante e impetuosa, essa antológica criação de Nino Rota é perfeita, não devendo absolutamente nada aos grandes scores de toda a história do cinema. Por isso mesmo, e não é pouca coisa, está à altura da obra-prima de Visconti sobre a decadência da aristocracia siciliana em meados do século XIX, durante o processo de formação do moderno estado italiano.  
O link abaixo contém um pequeno trecho da belíssima trilha sonora composta por Nino Rota para o filme.



segunda-feira, 1 de setembro de 2014

"The Classic Film Scores" e os anos de ouro de Hollywood



A série "The Classic Film Scores" reúne trilhas sonoras clássicas de Hollywood, compostas por mestres como Franz Waxman, Erich Wolfgang Korngold, Dimitri Tiomkin, David Raksin, Max Steiner etc.
Lançadas inicialmente em formato de LP, as obras foram transferidas para cd ao longo da década de 1980, sob a supervisão técnica e artística do já falecido maestro e arranjador Charles Gerhardt.
Recentemente, entre 2010 e 2011, a Sony relançou os cds a partir de uma cuidadosa remasterização das gravações, permitindo às novas gerações a oportunidade de desfrutar de obras de indiscutível qualidade artística, combinada com um apuro técnico raro até para as gravações atuais. 
Trata-se de uma coleção primorosa, integrada por scores antológicos de compositores dos anos de ouro do cinema americano, para filmes que também marcaram época (Laura, Crepúsculo dos Deuses, Rebecca, O Príncipe Valente, Horizonte Perdido, O Príncipe e o Mendigo etc). Além disso, os livretos que acompanham as edições contêm uma pequena biografia do compositor e ainda detalhes curiosos das produções.
Por enquanto, só tenho os cds acima, mas pretendo completar a coleção de 13 títulos, infelizmente só disponíveis no exterior.


domingo, 6 de julho de 2014

Futebol, Copa do Mundo e o poder da FIFA



Sempre tive minhas diferenças com o futebol, principalmente por causa da irracionalidade que domina boa parte dos torcedores, capazes de reações estúpidas em defesa do time do coração, mas é preciso admitir que só mesmo o futebol produz situações como a participação verdadeiramente épica da seleção da Costa Rica nesta Copa do Mundo.
Um time que reúne jogadores em sua maioria desconhecidos no mundo "estrelado" do futebol foi capaz de ganhar de seleções tradicionais e campeões mundiais como Uruguai e Itália, além de empatar com a Inglaterra, outra campeã do mundo, sendo eliminada invicta da competição somente após a disputa de pênaltis contra a poderosa Holanda. 
Não, não há esporte no mundo que permita que tamanha diferença de prestígio (e por vezes técnica) seja reduzida ao mínimo em confrontos diretos numa competição. É certamente por isso que o futebol encanta multidões (ou bilhões!) no mundo inteiro. E agora, pelo que tenho lido, até os norte-americanos, sempre relutantes a se render a qualquer coisa que não lhes seja familiar, estão sendo definitivamente seduzidos pelo velho esporte bretão, ou "soccer", como se referem ao futebol que se pratica no resto do mundo. A foto abaixo mostra o estádio de Chicago lotado de torcedores para acompanhar pelos telões o jogo entre EUA x Portugal, que teve maior audiência nas tv americanas do que as finais da NBA (basquete) e da World Series (beisebol), esportes que se constituem em verdadeiras instituições culturais americanas. 
A FIFA detém os direitos de exploração comercial do evento mais popular e lucrativo do mundo contemporâneo. Das capitais mais ricas do ocidente às regiões mais remotas e pobres do planeta, quase ninguém consegue ficar indiferente aos jogos da Copa do Mundo, independentemente de onde se realize. Pela riqueza e pelo patrimônio que administra, A FIFA se constitui, portanto, numa instituição mais poderosa do que muitas corporações capitalistas e governos nacionais, o que, para o bem e para o mal, torna o futebol um assunto muito mais sério do que costumamos admitir.  


sábado, 28 de junho de 2014

I Guerra: O conflito que mudou o mundo.


Os principais "aliados" da I Guerra

Há exatamente 100 anos, no dia 28 de junho de 1914, o assassinato, em Sarajevo, do arquiduque Francisco Ferdinando, herdeiro do império austro-húngaro, provocaria o início da I Guerra Mundial. Para quem tem interesse no assunto, recomendo o excelente livro "Catástrofe 1914: A Europa vai à Guerra", de Max Hastings, que traça um panorama bastante abrangente das causas do conflito e de seus desdobramentos e consequências ao longo do século XX (e até hoje!!). 
Foram aproximadamente 10 milhões de mortos em 4 anos de combates, travados principalmente nas desumanas e insalubres trincheiras espalhadas por boa parte do continente europeu. Diferentemente da II Guerra, cujo senso comum trata como uma luta justa entre o Bem e o Mal, nesse caso, a extensa literatura sobre o tema nos permite afirmar que nunca tantos morreram por tão pouco. Em certa medida, a I Guerra (ou Grande Guerra, assim denominada antes da eclosão da II Guerra) se constituiu na perda da "inocência" de um mundo que mudaria para sempre após o conflito. O conceito de estupidez que sempre associamos à guerra, qualquer guerra, talvez tenha germinado aí, tamanha a insanidade que envolveu as causas de sua deflagração.


Soldados britânicos em trincheiras típicas do conflito

terça-feira, 27 de maio de 2014

Torço por eles, torço pelo Brasil!



Tem sido emocionante conhecer as histórias de vida dos jogadores da seleção brasileira que o "Jornal Nacional" vem contando nas última semanas. De origem humilde, quase todos tiveram que superar carências de toda ordem na infância, incluindo perdas afetivas, até alcançar o sucesso de que desfrutam hoje, fazendo parte da seleção nacional, um sonho comum à maioria dos meninos brasileiros.
O que chama a atenção nas matérias, em particular, é o forte sentido de família revelado por muitos deles. Alguns, mesmo quando eram bem jovens, aproveitaram os primeiros salários para realizar o sonho da casa própria, assumindo até a responsabilidade pelo sustento de pais e irmãos, o que é admirável. E isso, em muitos casos, com menos de 20 anos, portanto, ainda recém-saídos da adolescência. 
Costumamos ver esses jogadores já consagrados em carrões que custam verdadeiras fortunas, revelando um estilo de vida nada condizente com suas origens. E não falta quem os critique por isso (eu mesmo já o fiz algumas vezes). Conhecendo, porém, a trajetória de cada um, fica mais fácil compreender tudo isso. E confesso que dá até vontade de torcer mais ainda para a seleção brasileira, para que cada atleta possa coroar sua comovente e bem-sucedida história de vida com a maior consagração que um jogador brasileiro pode alcançar na carreira, o título de campeão mundial de futebol jogando pela seleção nacional em seu próprio país. Torço por eles, torço pelo Brasil!


sábado, 24 de maio de 2014

Construindo o futuro



Artigo publicado no site da DW (link abaixo), canal internacional de TV da Alemanha, repercute discursos proferidos ontem, 23 de maio, no parlamento alemão (Bundestag), pelo presidente Joachim Gauck e pelo intelectual teuto-iraniano Navid Kermani, sobre a Lei Fundamental alemã (Grundgesetz), no ano em que a Constituição do país completa seu 65º aniversário. O texto propõe uma reflexão a respeito dos valores promovidos pela "Carta Magna" e de possíveis imperfeições, em especial nos artigos referentes à imigração e à concessão de asilo.
Na realidade, a construção de uma sociedade livre e democrática requer aperfeiçoamento constante. A Alemanha, ainda assombrada pelo ignóbil e desastroso passado recente, tem a vantagem (?!) de já saber o que não quer, ou o que precisa evitar. Talvez por isso seja mais fácil para os alemães saber onde querem chegar. E nós, brasileiros, que nação desejamos construir? Que valores perenes devemos cultivar no processo de consolidação de um modelo próprio de sociedade justa e compreensiva (não gosto da expressão tolerante) com a diversidade?



http://www.dw.de/opini%C3%A3o-%C3%A9-preciso-novo-patriotismo-constitucional-na-alemanha/a-17659057

quarta-feira, 14 de maio de 2014

Gosto, mas não entendo!



Heloísa Fischer, editora responsável pela "Agenda VivaMúsica!", revista especializada em música clássica, aborda no editorial publicado na edição de maio a questão da apreciação da música dita erudita por ouvintes ou espectadores "leigos", ou que assim se consideram. Segundo ela, "gosto de música clássica, mas não entendo" é o comentário que mais ouviu ao longo de todo o tempo em que atua na área. No texto, a jornalista reitera a opinião, já externada em outras oportunidades, de que ninguém precisa entender de música clássica para apreciá-la.
Faz pouco tempo, uma amiga com quem comentei sobre o concerto que assisti recentemente na Cidade das Artes, na Barra da Tijuca, afirmou que, de uma maneira geral, também gosta de música clássica, mas que não entende nada do assunto. O encontro foi casual, eu tinha pressa e não estendi a conversa, mas fiquei intrigado com a observação, afinal, é possível alguém não entender algo que aprecia (ou vice-versa)? E o que significa entender música ou qualquer outra manifestação artística? 
Acredito que se alguém efetivamente gosta de uma sinfonia de Beethoven, ou de um quadro de Renoir, já está, em alguma medida e do seu jeito, entendendo a obra, ainda que eventualmente não disponha de conhecimento teórico para identificar os elementos (ou códigos) de sua construção e todo o universo de significados ali representados. Ou será que é mesmo necessário tudo isso para entender uma obra artística? 



segunda-feira, 5 de maio de 2014

Ignorância, preconceito e indignação


Mais um caso de racismo foi registrado ontem à tarde no futebol espanhol, no final do jogo do Levante contra o Atlético de Madrid.
Há atletas que reagem como Daniel Alves, do Barcelona, que pegou a banana, comeu e continuou jogando como se nada tivesse acontecido. Ótimo pra ele.
Mas há outros, como parece ser o caso do jogador do Levante (eu assisti ao vivo), que reagem com incontida indignação e revolta quando são alvos de manifestações estúpidas de racismo. Sentem-se, com justiça, humilhados e atingidos em sua dignidade, e o que é pior, impotentes diante de atos de violência praticados por covardes que se escudam no anonimato das arquibancadas e na tolerância da sociedade. Eles têm a minha mais sincera e profunda solidariedade.
O fato é que o racismo no futebol não é maior nem menor do que o racismo encontrado na sociedade. A única maneira de reduzi-lo drasticamente, em qualquer país ou instância das relações humanas, é por meio da educação. Enquanto houver preconceito, o que se combate ainda na infância, no ambiente familiar e nos bancos escolares, haverá discriminação. Apenas identificar e punir racistas é o mesmo que negligenciar a saúde e tratar da doença. É pouco e não resolve o problema.



quinta-feira, 3 de abril de 2014

Guerra e desesperança



Transcrevo abaixo, do livro "Éramos Jovens na Guerra", de Sarah Wallis e Svetlana Palmer, um pequeno trecho do diário do jovem russo Yura Ryabinkin, de apenas 16 anos, que vivia com a mãe e a irmã num minúsculo apartamento de Leningrado, durante o cerco da cidade, realizado pelos nazistas entre 1941 e 1944. 
Yura, já pele e osso por não se alimentar direito há semanas, registra as agruras provocadas pela Guerra e tudo que perdeu nos últimos meses de sua ainda curta vida. É um relato singelo, mas profundamente comovente, por se tratar de um adolescente cujas esperanças estavam sendo dolorosa e violentamente subtraídas pelo conflito. Pra mim, não há nada mais triste nesta vida do que uma criança ou um jovem impedido de sonhar, ou de alimentar ilusões sobre o próprio futuro. Por isso mesmo, infelizmente, são eles, os jovens, as maiores vítimas das guerras. 

"9-10 de novembro de 1941
...Depois de semanas..., não me resta nenhum sentimento, só o frio, uma indiferença embotada a tudo. Eu não como o suficiente, durmo mal... Que será que a noite me reserva? Mamãe e Ira voltam para casa com fome, com frio e cansadas. Não temos comida nem lenha, mas o que não falta é muita gritaria, pois um dos nossos vizinhos conseguiu um bocado de carne e cereais em algum lugar, mas eu - eu não tenho. Eles dizem que há carne nas lojas, mas eu não consegui achar. Minha mãe faz aquela cara e dá um suspiro: ela trabalha o dia inteiro, não pode ir às lojas. De modo que lá vou eu de novo, de volta às filas. E volto mais uma vez de mãos abanando. Sei que sou o único que pode conseguir comida, o único que pode nos trazer de volta à vida, mas não tenho forças. Se pelo menos tivesse botas de feltro. Mas não tenho!
Decidi que inchar é melhor que isso. Vou beber toda a água que puder. No momento, só minhas bochechas estão inchadas, mas daqui a uma semana, dentro de um mês, se não for atingido por uma bomba, meu corpo todo estará inchado até o Ano Novo.
Eu me sento e começo a chorar...Tenho apenas 16 anos! Esses canalhas que começaram esta guerra...Adeus meus sonhos da infância! Vocês nunca mais voltarão. Eu queria que o passado simplesmente desaparecesse no inferno, queria nunca ter sabido o que é um pão ou uma salsicha! Queria que as lembranças felizes do passado não ficassem voltando para mim. Felicidade! É a palavra que resume todo o meu passado...Eu costumava me sentir seguro sobre o futuro!!! Nunca mais serei o mesmo..."

Yura não resistiu e integra o contingente de 650 mil civis que perderam a vida no cerco de 900 dias imposto pelos nazistas a Leningrado. Incapaz de se locomover com as próprias pernas, não teve forças para acompanhar a mãe e a irmã (ambas também muito fracas) durante a evacuação da cidade. A mãe morreu dias depois, mas a irmã Ira, acolhida num orfanato, recuperou-se de uma distrofia e sobreviveu à guerra.

Jovem europeu durante a Guerra

terça-feira, 1 de abril de 2014

"Sequestrados" na Cortina de Ferro


Praga

A maioria dos amigos já sabe das minhas frequentes viagens à Europa. Aqui mesmo já relatei episódios pitorescos e interessantes que colecionei nas várias viagens, atravessando países e fronteiras do continente. Naturalmente, diante da grande quantidade de situações que vivenciei ao longo desses anos, algumas permanecem inéditas para a maior parte dos amigos. É o caso que relato a seguir.
Em minha viagem de 2006, fui à Europa acompanhado de um amigo do trabalho, programando uma estada de 10 dias na Alemanha, durante a primeira fase da Copa do Mundo. Lá, encontraríamos um casal de amigos (uma brasileira e um alemão) que vivem em Heidelberg (próximo de Frankfurt), com o propósito de passear pelo país, aproveitando a oportunidade para conhecer algumas cidades-sede. Fomos a Kaiserslautern, Stuttgart e Munique, onde estivemos justamente no dia 09 de junho, data da abertura do evento, certamente um dos dias mais felizes da minha vida!
Antes de chegar à Alemanha, resolvemos visitar Itália, Áustria e República Tcheca como um aperitivo para o "grand finale", que seria o acompanhamento de uma Copa do Mundo no próprio país-sede. Começamos a viagem pela Itália, visitando Roma, Florença, Siena e Veneza. Em seguida, fomos para a Áustria, de trem, passando por Salzburg e Viena, cidade onde permanecemos por 4 dias. Como na época o passe de trem adquirido no Brasil não incluía a República Tcheca (não sei agora), tínhamos que encontrar uma solução local para o deslocamento para Praga. Foi aí que um amigo austríaco, que gentilmente nos recebeu em Viena, e com quem passeamos por um dia inteiro pela cidade, deu a dica para uma das viagens mais pitorescas e inusitadas que já fiz. Segundo ele, a melhor (ou mais barata) maneira de viajar de Viena para Praga seria de ônibus. De fato, o preço anunciado era curiosa e surpreendentemente baixo, apenas 18 euros, o que equivalia ao custo de 3 garrafas de água na cara capital austríaca. É claro que topamos, já que ainda teríamos muitos gastos na Alemanha em plena Copa do Mundo. 
Compramos o "bilhete" numa escritório do centro de Viena, almoçamos rapidamente e chegamos ao local combinado um pouco antes das 15h, o horário informado para a saída. Lá estava o solitário ônibus, numa rua que em nada lembrava uma rodoviária, e apenas com o motorista e o substituto (ambos beirando os 65 anos) no interior. Em seguida, embarcamos e nos acomodamos nos lugares indicados nos respectivos bilhetes. Passados alguns minutos, e já na hora prevista para a saída, estranhamos que ninguém mais tinha embarcado. Como assim? Um ônibus internacional vai partir com apenas dois passageiros? O fato é que logo depois o motorista, acompanhado do eventual substituto, deu a partida no veículo e saímos todos (2 motoristas e 2 passageiros!!) em direção a Praga, cruzando pequena parte da Áustria e um longo trecho do território tcheco. Intrigados com isso, eu e meu amigo começamos a especular sobre o que poderia estar acontecendo. Instantes depois, chegamos à conclusão de que logo na primeira parada o ônibus certamente receberia novos passageiros, e assim seria ao longo do percurso, já que a viagem levaria horas, passando por várias cidades austríacas e tchecas. 
Para nossa surpresa, o veículo só parou uma ou duas horas mais tarde, na fronteira dos dois países, para que a imigração tcheca pudesse checar nossos passaportes e nos liberar para seguir viagem. Enquanto esperávamos pela devolução dos documentos, que foram levados para o interior do posto da alfândega, meu amigo começou a dar sinais de impaciência, suspeitando até que poderíamos ser presos sob alguma falsa alegação. Como não falávamos o idioma tcheco, nem sabíamos se os funcionários da imigração entendiam bem o inglês, imaginamos que havia mesmo o risco de termos problemas de comunicação, caso fosse necessário dar alguma explicação. Em pouco tempo, porém, nossos receios se mostraram infundados. Após devolver nossos passaportes, eles falaram alegremente de futebol e da Copa do Mundo, e nos desejaram uma boa viagem, além de sorte para a seleção brasileira. 
Um pequeno susto que logo substituímos por uma nova suspeita levantada pelo meu amigo. Após tantas horas de viagem cruzando o interior da República Tcheca, passando por cidades como Cesky Krumlov, Zlata Koruna e Tabor, será que estávamos sendo "sequestrados"? Bem, realmente, a viagem estava longe de parecer normal. Como um ônibus atravessa dois países com apenas dois viajantes, sem parar uma única vez para receber novos passageiros? É claro que eu mesmo não dei o menor crédito para isso, mas continuei um pouco intrigado com a situação. Meu amigo, que deve ter visto muitos filmes inspirados na Guerra Fria, resolveu fazer um teste com os possíveis algozes e pediu para parar numa posto de gasolina, alegando que queria ir ao banheiro e tomar um café. Para nosso alívio, o motorista prontamente atendeu, parando num posto de gasolina que mais parecia saído daqueles "road movies" americanos. Desembarcamos, fomos ao banheiro e nos dirigimos à loja de conveniência para tomar o tão aguardado café. Bem, até que tentamos, e com bastante insistência, mas o atendente de plantão naquele fim de mundo, acreditem, só conhecia uma frase em inglês, "we accept euros" (aceitamos euros). E repetia isso o tempo inteiro, apoiando as mãos no balcão. De nossa parte, dizíamos apenas "coffee", "coffee", mas ele não entendia nada. O fato é que saímos do estabelecimento sem conseguir beber o tão precioso líquido. Se não era um sequestro, como suspeitáramos antes, estávamos quase convencidos de que se tratava, pelo menos, de uma "pegadinha" internacional.
De volta à estrada, o ônibus seguiu viagem, mas já não estávamos tão receosos de nossos destinos. É óbvio que se houvesse alguma má intenção dos motoristas eles jamais teriam parado naquele posto de gasolina. Resolvemos, então, afastar os maus pensamentos, e passamos a apreciar a bela paisagem do país. Não demorou muito para que meu amigo resolvesse fazer uma nova solicitação. Levantou-se, foi ao encontro dos motoristas e perguntou se eles tinham café ou qualquer outra bebida para servir. O motorista substituto respondeu que café não tinha, mas cerveja sim, afinal, estávamos na República Tcheca, o país das mais famosas cervejas do mundo. Prontamente ele se dirigiu a um pequena geladeira localizada no meio do veículo, retirou de lá uma lata da Krusovice, tradicional cerveja tcheca (de mais de 500 anos!), e a entregou ao meu amigo, cobrando apenas 1 euro. Logo em seguida, indaguei se também havia água. Ele disse que sim e me deu a garrafa, mais uma vez ao custo de 1 euro. Pelo visto, tudo ali custava 1 euro. Se oferecêssemos 1 euro pelo próprio ônibus, desconfio que talvez desse pra levar o "possante".
Quando estávamos bem próximos da chegada a Praga, meu amigo "aprontou" outra vez, fazendo um novo e agora ousado pedido. Como éramos os únicos passageiros em toda a viagem, que durou quase 5 horas, ele resolveu abusar, solicitando ao motorista que nos deixasse na rua do hotel. E conseguiu! Ele parou bem próximo do local que indicamos, e ali descemos do ônibus, não sem antes agradecer aos dois pela gentileza, pela atenção e pela viagem "tranquila" que nos proporcionaram desde Viena. Mal sabiam, é verdade, de nossos suspeitas sobre suas reais intenções.
Para concluir, nos últimos anos, tenho ouvido falar muito da falta de preparo, e até da grosseria, dos tchecos ao receber os turistas. Realmente, mesmo em Praga, poucos falam inglês, porém, esse episódio, que guardo com muito carinho em minha memória, serve como um testemunho legítimo de como é possível encontrar pessoas gentis e amáveis em qualquer lugar do mundo. Aliás, a esse respeito, posso relatar diversos episódios ocorridos em minhas viagens que desautorizam a maioria dos clichês sobre a natureza e o temperamento dos europeus, incluídos aí os parisienses de tão má fama. Mas essas são outras histórias.

Praga

domingo, 30 de março de 2014

Ciganos na Europa e a vocação do Brasil


Acampamento cigano na Europa, no séc. XIX

Segundo o site do jornal "El País" (link abaixo), de Madrid, o governo sueco acaba de admitir publicamente que o país perseguiu e esterilizou ciganos, além de raptar suas crianças, ao longo do século passado. O objetivo do atual governo, de acordo com a matéria, é "acertar as contas com o passado para tratar de melhorar o presente". 
Tomara que outros países do continente europeu (e do mundo!), inspirados pelo gesto sueco, resolvam seguir o exemplo, assumindo para as novas gerações e para o mundo que tiveram (ou têm) as mesmas práticas, não apenas em relação aos ciganos, mas também a diversas minorias étnicas e sociais desfavorecidas.
É preciso admitir que arte e cultura milenares e belas paisagens não encobrem o passado (em algumas regiões, o próprio presente) sombrio dos povos da Europa. E é de lá, para o bem ou para o mal, que herdamos tudo que somos e representamos no contexto da cada vez mais questionada e decadente civilização ocidental. 
Por sua diversidade humana, artística e cultural, peculiar exatamente por conter uma mescla de diferentes origens e elementos étnicos, o Brasil pode perfeitamente propor ao mundo caminhos alternativos, pavimentados por um novo e avançado conjunto de valores civilizatórios. Sinceramente, acredito que essa seja a nossa verdadeira vocação, mas ainda não estamos credenciados para tal desafio porque insistimos em chafurdar em mazelas sociais, econômicas e políticas já há muito superadas no mundo mais desenvolvido. Eleições após eleições, caminhamos a passos de cágado (quando não patinamos sem sair do lugar!) em direção ao futuro. Enquanto isso, deixamos de efetivamente fazer a diferença no mundo, sem qualquer pretensão, é claro, de gigantismo ou imperialismo.


Família de ciganos na Sérvia

domingo, 23 de março de 2014

"Cidade das Artes" e o jogo dos incontáveis erros



Estive ontem, pela primeira vez, na "Cidade das Artes", um dos mais novos elefantes brancos do Rio de Janeiro, obra faraônica do período de César Maia na prefeitura da cidade, que custou em torno de 600 milhões de reais!
Convidado por uma amiga, fui lá para assistir ao concerto de abertura do "15xÁustria", evento promovido pela Prefeitura do Rio de Janeiro, em parceria com a Embaixada da Áustria, com as participações da OSB, conduzida pelo maestro titular Roberto Minczuk, e do convidado especial Rainer Honeck, primeiro violinista da Orquestra Filarmônica de Viena. 
Sob o ponto de vista artístico, o programa, que incluiu o concerto para violino de Beethoven e a 1ª sinfonia de Brahms, foi excelente. Gostei bastante da performance da OSB, que parece melhorar a cada ano, e da acústica do local, embora eu não seja especialista nessa área. 
Quanto às instalações da complexo "Cidade das Artes", fiquei profundamente decepcionado com o que vi. Tudo ali parece o jogo, não dos 7, mas dos incontáveis erros. Logo ao chegar nas imediações do local, tivemos dificuldade para encontrar a entrada do estacionamento, tamanha a precariedade da sinalização. Já no interior da "Cidade", também muito mal sinalizado, enfrentamos um calor insuportável enquanto aguardávamos na fila para entrar na sala de concertos. Como o evento era promocional e a entrada livre em todos os setores (à exceção da plateia, reservada para os convidados mais ilustres), escolhemos assistir ao concerto do camarote, em frente ao palco. Péssima ideia! As cadeiras são apertadíssimas e o espaço para as pernas é insuficiente. Para que alguém passe, você precisa se levantar, caso contrário, nada feito! O elevador, embora tenha capacidade para algo em torno de 15 pessoas, estava levando apenas 6, segundo o funcionário da manutenção, por medida de segurança. O pior é o banheiro. Num complexo gigantesco como aquele, no qual podem circular mais de mil pessoas num único evento (só a "Grande Sala", local destinado aos principais concertos, tem 1800 lugares!), há apenas dois mictórios e duas cabines. E só vi um banheiro no andar dos camarotes. Certamente por causa disso, presenciei lá uma cena rara - fila em banheiro masculino. Enfim, há muito mais equívocos naquilo tudo, mas a lista é extensa e cansativa.
Finalmente, devo dizer que não consegui encontrar qualquer justificativa para a aplicação de 600 milhões de reais na construção daquelas instalações. Nada ali parece indicar isso, mas essa matéria é complexa (ou nebulosa) e requer uma apreciação mais criteriosa dos especialistas. 


sexta-feira, 21 de março de 2014

Promessa de novas emoções?


O sorteio, realizado ontem, dos jogos das quartas de final da Liga dos Campeões da Europa, que definiu mais um confronto entre Manchester United e Bayern de Munique na competição, me fez recordar da final antológica de 1999, entre os dois times, disputada no Camp Nou, em Barcelona. 
Na verdade, não há adjetivo que traduza as emoções contidas nos momentos finais daquela partida, que terminou com o placar de 2 a 1 para o time inglês. Durante quase todo o jogo, o Manchester United foi dominado taticamente pelo Bayern de Munique, que fez 1 a 0, sem dar o menor sinal de que teria condições de superar a equipe alemã. Surpreendentemente, o time inglês virou o jogo com dois gols de escanteio, marcados no acréscimo, que representaram a glória suprema para os ingleses e uma tragédia colossal para os alemães. As cenas dos jogadores do Bayern de Munique desabando (e chorando) no gramado do Camp Nou, após o apito final, foram comoventes. Não menos emocionante foi a festa proporcionada por torcedores e jogadores ingleses, dominados por um alegria contagiante. 
Talvez todos os envolvidos no episódio, vencedores e vencidos, não estivessem acreditando no que acabava de acontecer. Tenho certeza de que Barcelona foi palco, naquela noite, de um dos episódios mais memoráveis da história do futebol. Eu mesmo nunca vi nada igual, nem antes, nem depois. Aliás, jornadas como aquelas explicam a paixão avassaladora que este esporte (ainda) desperta em todo o mundo.
O vídeo abaixo mostra os últimos minutos da partida, com transmissão da tv alemã, e a reação de narrador, jogadores e torcedores dos dois times.

terça-feira, 18 de março de 2014

Rivaldo, uma bela carreira que termina no ostracismo






















Após atuar no último domingo pelo modesto Mogi Mirim, do interior de São Paulo, Rivaldo se despediu do futebol, aos 41 anos, realizando o sonho de jogar ao lado do filho Rivaldinho.
A timidez, a simplicidade e o temperamento recluso de Rivaldo acabaram levando-o praticamente ao ostracismo no final da carreira. É uma pena. O jogador merece de todos nós reconhecimento e gratidão por tudo que fez pelo futebol brasileiro. Curiosamente, a única vez que o vi jogar foi no Camp Nou, pelo Barcelona, na última rodada do campeonato espanhol, em 1999, ano em que foi eleito pela FIFA o melhor jogador do mundo. Naquela longínqua tarde de 13 de junho, um domingo, diante de quase 70 mil torcedores, e com o Barça já campeão da Liga por antecipação, ele deu um show de bola contra o Bétis (4 a 1), e ainda fez um gol, coroando uma temporada perfeita no clube catalão.
Mas não podemos esquecer que Rivaldo foi também um dos maiores responsáveis pelo pentacampeonato conquistado pelo Brasil na Copa do Mundo de 2002. Uma bela trajetória (900 jogos!) que não pode ser desprezada pelas novas gerações.


Rivaldo em ação ao lado do filho Rivaldinho

segunda-feira, 17 de março de 2014

A revisão do passado sombrio de Heidegger




A publicação na Alemanha, nas últimas semanas, dos 8 volumes dos escritos autobiográficos (Cadernos Negros) de Martin Heidegger (1889-1976) promete estimular o debate sobre as relações perigosas do filósofo alemão com o nazismo.
Os textos e as manifestações públicas de Heidegger já conhecidas revelam o antissemitismo do pensador e sua adesão ao regime nazista. Por tudo que li até agora, excluídos os "Cadernos Negros", não acredito que, no caso de Heidegger, se deva aplicar o princípio da contextualização, tão difundido recentemente, com o qual se pretende diminuir ou mesmo retirar a culpa de determinados personagens e setores da sociedade alemã nos tristes episódios da II Guerra, considerando possíveis circunstâncias atenuantes em que se deram os acontecimentos. Aliás, entendo que precisamos ter cuidado com a aplicação dessa tese sem o devido critério. Daqui a pouco, todos acabarão sendo absolvidos por conta disso, até mesmo o líder máximo do III Reich.
Não podemos negligenciar o fato de que um genocídio foi cometido em pleno século XX, ceifando a vida de milhões de inocentes, incluindo judeus, ciganos, homossexuais e deficientes físicos e mentais, entre outras minorias. Logo, trata-se apenas do imperativo de responsabilizar as pessoas que, por ações, omissões ou opiniões, contribuíram para a perpetração daqueles crimes hediondos.
Reconheço que não me agrada nem um pouco essa onda revisionista que vem reavivando os debates sobre o assunto nos últimos anos. Tem muita gente de boa-fé que adota esse discurso sobre pessoas e acontecimentos daquela época, acreditando que uma nova análise, sob uma perspectiva histórica, permite rever alguns conceitos e julgamentos relativos ao episódio. Mas é preciso ressaltar que há também aqueles que se aproveitam disso para tentar, com propósito no mínimo reacionário, distorcer ou empanar os fatos.
Por coincidência, estou lendo o livro "O Trauma Alemão", de Gitta Sereny, que trata também dessa matéria, e com bastante propriedade. Entre tantas que já li, essa obra, que inclui entrevistas realizadas com líderes nazistas e pessoas comuns (vítimas e algozes), é a que mais se aproxima de uma explicação razoável para tudo que ocorreu na Alemanha durante aquele período. Estou na metade da leitura, mas já recomendo.



sábado, 15 de março de 2014

O lado humano de "Cosmos"


Carl Sagan e Neil deGrasse Tyson

Gostei do primeiro episódio da nova série "Cosmos", embora Neil deGrasse Tyson, o atual apresentador, não tenha nem a metade do carisma de Carl Sagan. Bem, é preciso reconhecer também que se torna difícil pra qualquer um competir com o mito em que se transformou Sagan, principalmente após a sua morte. 
Por outro lado, vale destacar que, mais do que todos os conceitos científicos transmitidos no programa, o que me impressionou e comoveu particularmente foi o aspecto humano revelado por Neil Tyson ao descrever seu primeiro encontro com o então já conceituado Carl Sagan, em 1975. Mal saído da adolescência (17 anos), o jovem Tyson foi convidado pelo cientista para conhecer seu local de trabalho. Após acompanhar o rapaz por um dia inteiro pelas instalações do laboratório, Sagan o levou até o ponto de ônibus, deixando com ele o número do seu telefone, e oferecendo a própria casa da família para Tyson passar a noite, caso o ônibus não aparecesse, já que nevava bastante naquele dia. 
Esse singelo evento, que demonstra cuidado e atenção de um profissional já consagrado com um simples estudante, certamente marcou e inspirou Neil Tyson, que fez questão de descrevê-lo, em detalhes, no primeiro episódio do programa. Isso, por si só, já teria sido um belo legado deixado por Carl Sagan, não só para Tyson, mas para todos nós, agora que conhecemos a história, afinal, ninguém precisa escrever um livro, fazer um filme ou mesmo governar um país para fazer a diferença. Esse é, aliás, um bom exemplo de como um simples gesto de amor ao próximo pode mudar a vida de uma pessoa e até o mundo.


segunda-feira, 10 de março de 2014

A "batalha das flores" em Viena e a anexação da Áustria




Um das páginas mais tristes e vergonhosas da história da Áustria, outrora sede de um dos últimos impérios europeus, começou a ser escrita no dia 13 de março, há 76 anos, na que ficou conhecida como blumenkrieg, ou "Batalha das Flores", quando uma multidão de 250 mil austríacos, em delírio e portando flores, recebeu Hitler em Viena. Era o início da anschluss, a anexação da Áustria pelo III Reich alemão.
Por muitos anos, a Áustria preferiu posar de vítima, transferindo toda a responsabilidade do evento para o país vizinho. Somente nas últimas décadas do século passado o país resolveu encarar os fatos e assumir seu triste papel na II Guerra, promovendo na sociedade uma visão mais crítica em relação ao nazismo e à perseguição aos judeus durante o conflito. 
Segundo o austríaco Oliver Rathkolb, professor de História Contemporânea da Universidade de Viena, em entrevista à TV alemã "Deutsche Welle", há ainda na Áustria, e na própria Alemanha, uma forte tendência dos mais jovens de "colocar um ponto final no assunto", o que é até compreensível, já que não tiveram qualquer participação nos eventos infames daquele período. Exatamente por isso, Rathkolb acredita que, a cada dez anos, a dolorosa história protagonizada pelos dois países deve ser "rediscutida e reelaborada para a geração seguinte".




domingo, 9 de março de 2014

Em Vaduz, por acidente




Em viagem de carro com amigos da Alemanha nas férias do ano passado, ao atravessar os alpes suíços em direção à Áustria, após visitar belíssimas aldeias típicas da região, acabamos, quase que por acaso, encontrando Vaduz, a capital do principado de Liechtenstein. 
Não programamos passar por lá, mas essa é uma das vantagens de "colocar o pé na estrada", sem roteiro muito definido. Depois de horas percorrendo as estradas da região, e sem encontrar qualquer controle de fronteira, acabamos na praça central da cidade, um lugar verdadeiramente "fora desse mundo". Era um final de tarde de verão, mas, como o sol ainda não se punha, aproveitamos a oportunidade para tomar uma cerveja no bar da praça e tirar fotografias. Em seguida, ainda animados com a surpresa da viagem, passeamos um pouco pelas redondezas, explorando o reduzido comércio local, já quase todo fechado em função do horário. Finalmente, resolvemos seguir viagem, impressionados com a beleza e a presumível alta qualidade de vida da cidade e do próprio principado. Uma experiência encantadora que jamais esquecerei, e que devo principalmente aos amigos alemães, que sempre nos levam aos lugares mais surpreendentes e encantadores da Alemanha e da Europa.



segunda-feira, 3 de março de 2014

José Padilha e a carência do cinema nacional



Gostei da entrevista de José Padilha, diretor de "Tropa de Elite" (1 e 2) e do recente "Robocop", para o programa "Almanaque", da Globo News. Além de tratar com propriedade as questões específicas da indústria cinematográfica, aqui e em Hollywood, o diretor revelou um raro bom senso na abordagem de temas mais delicados da nossa sociedade, como a relação entre manifestações de rua, "black blocs" e segurança pública. 
Entretanto, destaco o comentário de Padilha a respeito da carência de bons roteiristas no cinema nacional, ao contrário do que ocorre nos EUA. Segundo ele, isso se deve à diferença da quantidade de profissionais que se dedicam a esse ofício no Brasil e em Hollywood. 
Em minha opinião, com uma indústria cinematográfica estabelecida há quase um século, a carreira de roteirista nos EUA é uma realidade e muitos desejam se inserir nesse mercado cada vez mais competitivo. Como a indústria de cinema no Brasil, apesar dos sucessos de bilheteria dos últimos anos (incluindo os dois "Tropa de Elite" do cineasta), ainda não se consolidou, com limitadas oportunidades e baixa remuneração, poucos aqui se dedicam a essa prática, o que explica, pelo menos em parte, nossa carência na área.




Cinema, música e preconceito



Como já devem ter percebido (aqueles que assistem, é claro), durante a entrega dos prêmios do Oscar, a cada vez que um apresentador/convidado (ou dupla) entra no palco, a produção toca ao fundo um pequeno trecho (entre 5 e 10 segundos) de uma trilha sonora selecionada entre tantas da história do cinema. Isso, na verdade, já é uma tradição na festa, mas uma música em especial me chamou a atenção essa noite. Logo nas primeiras notas, reconheci a bela e injustamente esquecida trilha sonora composta por Elmer Bernstein para o clássico "O Sol é para Todos" (1961), de Robert Mulligan, baseado no romance homônimo de Harper Lee, vencedor do Pulitzer de 1960.
Para quem não se lembra, o filme tem Gregory Peck no papel de um advogado íntegro, viúvo e pai de duas crianças, que resolve defender um homem negro acusado injustamente de estuprar uma jovem branca. Com essa iniciativa corajosa ele desafia os moradores racistas de Maycomb, pequena cidade onde vive no Alabama, nos EUA, no início da década de 1930, que condenam o réu antes de qualquer julgamento.
Como podem ver, preconceito e prejulgamentos são temas que, infelizmente, não perdem a atualidade, e não só nos EUA.
Uma faixa do cd da também clássica (e rara) trilha sonora composta por Elmer Bernstein pode ser ouvida no vídeo abaixo.


sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Biografia não autorizada (e pornográfica?) de Mozart


Será que Mozart autorizaria a publicação das cartas libidinosas que escreveu para a esposa Constanze? Duvido muito. Não acredito que um homem do século XVIII concordasse com isso, nem mesmo o irreverente compositor austríaco. 
De qualquer maneira, a divulgação dessas correspondências certamente permitiu às gerações seguintes um conhecimento mais fiel do perfil psicológico e do temperamento de Mozart, e em que medida isso se refletiu nas obras do artista. 
No trecho, transcrito abaixo, da carta enviada por Mozart para Constanze, datada de 23 de maio de 1789, o genial compositor revela seu lado, digamos assim, libertino, mas com bastante estilo. Confiram:

"Na quinta-feira, dia 28, viajo para Dresden, onde deverei pernoitar. No dia 1º de junho, dormirei em Praga, e no dia 4, será 4? - com a minha querida mulherzinha. 
Arrume o querido e belíssimo leito com esmero, pois meu garotinho realmente o merece; ele se comportou muitíssimo bem e não deseja outra coisa senão possuir sua belíssima... imagine só o maroto: enquanto escrevo essas linhas, ele se insinua até a borda do tampo da mesa e me olha com um olhar inquiridor. Mas, longe de ser indolente, bato-lhe no nariz como se deve... e agora o danadinho se inflama ainda mais furiosamente e está quase fora de controle."



quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Não foi apenas entretenimento



Assisti mais uma vez no domingo, no Telecine Touch, ao excelente "Foi Apenas um Sonho" (2008), de Sam Mendes (o mesmo de "Beleza Americana"), e admito que a experiência esteve longe de ser mero entretenimento. 
A história, que trata dos problemas de relacionamento de um casal americano de classe média (Leonardo di Caprio e Kate Winslet), incomoda, em particular, porque aborda criticamente questões constrangedoras que vivemos ou testemunhamos em nossas relações íntimas ou sociais. É um filme muito bem realizado, como costumam ser as produções dirigidas por Sam Mendes, mas não deixa de ser angustiante, já que nos faz acompanhar o processo doloroso de deterioração de uma relação amorosa aparentemente comum, que vai se revelando cada vez mais doentia e destrutiva. O final é assustador!

domingo, 9 de fevereiro de 2014

Tempos sombrios no Brasil

Tempos sombrios os que estamos vivendo em nosso país. Um grupo de 14 moradores do bairro do Flamengo, aqui no Rio, resolveu fazer justiça com as próprias mãos, torturando e prendendo um assaltante (menor de idade) pelo pescoço num poste, e deixando-o completamente nu em público. Em outro caso, mais grave, ocorrido há alguns dias na Baixada Fluminense, bandidos locais executaram a sangue-frio, e à luz do dia, um assaltante que atuava na região.
Quando cidadãos, bons ou maus, tomam para si o direito de julgar e condenar supostos ou reconhecidos criminosos, desprezando o fato de que cabe somente ao Estado legal e democraticamente constituído a aplicação da Justiça, temos aí um perigoso retrocesso civilizatório, campo fértil para a proliferação das execuções sumárias e da barbárie.
Tudo isso me faz lembrar do filme "Consciências Mortas", um clássico esquecido de 1943, com Henry Fonda, que trata exatamente dos riscos de prejulgamentos e da aplicação de penas sem a instauração do devido processo legal, negando ao acusado o direito à plena defesa. Altamente oportuna e recomendável, a produção se constitui numa das mais belas defesas dos valores da civilização já transmitidas pelo cinema. Quem tiver a oportunidade, não deve deixar de assistir!


A maior mazela do nosso tempo

Mais um do show business que sucumbe à maior mazela do nosso tempo, as malditas drogas!
Philip Seymour Hoffman realizou trabalhos memoráveis no cinema. Poderia citar muitos, mas fico apenas com "Capote", com o qual ganhou o Oscar, em 2005, e seu não menos brilhante desempenho em "Dúvida" (2008), filme a que assisti recentemente, no qual contracena de igual para igual com Meryl Streep, o que não é pouca coisa!
Seymour pode ser considerado, sem favor algum, um dos mais talentosos atores de sua geração. Certamente, vai deixar saudades!!

Clássico eterno



Embora haja controvérsias, muitos afirmam que "A Noviça Rebelde" (1965) é datado e claramente antiquado. Outros já acham que o filme teria poucas chances com o público de hoje, interessado em narrativas mais ágeis, menos romantizadas e recheadas de efeitos especiais. 
Mas acredito que a produção contenha alguns ingredientes que deverão permanecer por muito tempo como padrões de excelência no cinema. Refiro-me à fotografia, ao roteiro e especialmente às antológicas canções escritas para a produção por Richard Rodgers (música) e Oscar Hammerstein II (letras), com arranjos orquestrais de Irwin Kostal. 
O vídeo acima (que eu assisti ontem na BBC HD) apresenta "Climb Every Mountain", certamente uma das mais belas canções do cinema em todos os tempos. É simples mas aborda algumas questões que atravessam gerações e não envelhecem: a necessidade de buscarmos a realização de nossos sonhos, seguindo caminhos novos (ou desconhecidos), e, talvez o mais importante de tudo, não desistir nunca!!

Tributo a Claudio Abbado

O universo da música clássica fica mais pobre com a morte do italiano Cláudio Abbado (80 anos), um dos últimos representantes da geração mítica de regentes do século XX, que já esteve à frente de duas das mais prestigiadas orquestras do mundo, as filarmônicas de Berlim e de Viena. 
Atualmente, o jovem regente venezuelano Gustavo Dudamel (32 anos), o mais novo queridinho de público e crítica, tenta herdar esse legado e essa honraria, mas parece que a era de culto, reverência e celebração dos maestros ficou definitivamente para trás.