quinta-feira, 3 de abril de 2014

Guerra e desesperança



Transcrevo abaixo, do livro "Éramos Jovens na Guerra", de Sarah Wallis e Svetlana Palmer, um pequeno trecho do diário do jovem russo Yura Ryabinkin, de apenas 16 anos, que vivia com a mãe e a irmã num minúsculo apartamento de Leningrado, durante o cerco da cidade, realizado pelos nazistas entre 1941 e 1944. 
Yura, já pele e osso por não se alimentar direito há semanas, registra as agruras provocadas pela Guerra e tudo que perdeu nos últimos meses de sua ainda curta vida. É um relato singelo, mas profundamente comovente, por se tratar de um adolescente cujas esperanças estavam sendo dolorosa e violentamente subtraídas pelo conflito. Pra mim, não há nada mais triste nesta vida do que uma criança ou um jovem impedido de sonhar, ou de alimentar ilusões sobre o próprio futuro. Por isso mesmo, infelizmente, são eles, os jovens, as maiores vítimas das guerras. 

"9-10 de novembro de 1941
...Depois de semanas..., não me resta nenhum sentimento, só o frio, uma indiferença embotada a tudo. Eu não como o suficiente, durmo mal... Que será que a noite me reserva? Mamãe e Ira voltam para casa com fome, com frio e cansadas. Não temos comida nem lenha, mas o que não falta é muita gritaria, pois um dos nossos vizinhos conseguiu um bocado de carne e cereais em algum lugar, mas eu - eu não tenho. Eles dizem que há carne nas lojas, mas eu não consegui achar. Minha mãe faz aquela cara e dá um suspiro: ela trabalha o dia inteiro, não pode ir às lojas. De modo que lá vou eu de novo, de volta às filas. E volto mais uma vez de mãos abanando. Sei que sou o único que pode conseguir comida, o único que pode nos trazer de volta à vida, mas não tenho forças. Se pelo menos tivesse botas de feltro. Mas não tenho!
Decidi que inchar é melhor que isso. Vou beber toda a água que puder. No momento, só minhas bochechas estão inchadas, mas daqui a uma semana, dentro de um mês, se não for atingido por uma bomba, meu corpo todo estará inchado até o Ano Novo.
Eu me sento e começo a chorar...Tenho apenas 16 anos! Esses canalhas que começaram esta guerra...Adeus meus sonhos da infância! Vocês nunca mais voltarão. Eu queria que o passado simplesmente desaparecesse no inferno, queria nunca ter sabido o que é um pão ou uma salsicha! Queria que as lembranças felizes do passado não ficassem voltando para mim. Felicidade! É a palavra que resume todo o meu passado...Eu costumava me sentir seguro sobre o futuro!!! Nunca mais serei o mesmo..."

Yura não resistiu e integra o contingente de 650 mil civis que perderam a vida no cerco de 900 dias imposto pelos nazistas a Leningrado. Incapaz de se locomover com as próprias pernas, não teve forças para acompanhar a mãe e a irmã (ambas também muito fracas) durante a evacuação da cidade. A mãe morreu dias depois, mas a irmã Ira, acolhida num orfanato, recuperou-se de uma distrofia e sobreviveu à guerra.

Jovem europeu durante a Guerra

terça-feira, 1 de abril de 2014

"Sequestrados" na Cortina de Ferro


Praga

A maioria dos amigos já sabe das minhas frequentes viagens à Europa. Aqui mesmo já relatei episódios pitorescos e interessantes que colecionei nas várias viagens, atravessando países e fronteiras do continente. Naturalmente, diante da grande quantidade de situações que vivenciei ao longo desses anos, algumas permanecem inéditas para a maior parte dos amigos. É o caso que relato a seguir.
Em minha viagem de 2006, fui à Europa acompanhado de um amigo do trabalho, programando uma estada de 10 dias na Alemanha, durante a primeira fase da Copa do Mundo. Lá, encontraríamos um casal de amigos (uma brasileira e um alemão) que vivem em Heidelberg (próximo de Frankfurt), com o propósito de passear pelo país, aproveitando a oportunidade para conhecer algumas cidades-sede. Fomos a Kaiserslautern, Stuttgart e Munique, onde estivemos justamente no dia 09 de junho, data da abertura do evento, certamente um dos dias mais felizes da minha vida!
Antes de chegar à Alemanha, resolvemos visitar Itália, Áustria e República Tcheca como um aperitivo para o "grand finale", que seria o acompanhamento de uma Copa do Mundo no próprio país-sede. Começamos a viagem pela Itália, visitando Roma, Florença, Siena e Veneza. Em seguida, fomos para a Áustria, de trem, passando por Salzburg e Viena, cidade onde permanecemos por 4 dias. Como na época o passe de trem adquirido no Brasil não incluía a República Tcheca (não sei agora), tínhamos que encontrar uma solução local para o deslocamento para Praga. Foi aí que um amigo austríaco, que gentilmente nos recebeu em Viena, e com quem passeamos por um dia inteiro pela cidade, deu a dica para uma das viagens mais pitorescas e inusitadas que já fiz. Segundo ele, a melhor (ou mais barata) maneira de viajar de Viena para Praga seria de ônibus. De fato, o preço anunciado era curiosa e surpreendentemente baixo, apenas 18 euros, o que equivalia ao custo de 3 garrafas de água na cara capital austríaca. É claro que topamos, já que ainda teríamos muitos gastos na Alemanha em plena Copa do Mundo. 
Compramos o "bilhete" numa escritório do centro de Viena, almoçamos rapidamente e chegamos ao local combinado um pouco antes das 15h, o horário informado para a saída. Lá estava o solitário ônibus, numa rua que em nada lembrava uma rodoviária, e apenas com o motorista e o substituto (ambos beirando os 65 anos) no interior. Em seguida, embarcamos e nos acomodamos nos lugares indicados nos respectivos bilhetes. Passados alguns minutos, e já na hora prevista para a saída, estranhamos que ninguém mais tinha embarcado. Como assim? Um ônibus internacional vai partir com apenas dois passageiros? O fato é que logo depois o motorista, acompanhado do eventual substituto, deu a partida no veículo e saímos todos (2 motoristas e 2 passageiros!!) em direção a Praga, cruzando pequena parte da Áustria e um longo trecho do território tcheco. Intrigados com isso, eu e meu amigo começamos a especular sobre o que poderia estar acontecendo. Instantes depois, chegamos à conclusão de que logo na primeira parada o ônibus certamente receberia novos passageiros, e assim seria ao longo do percurso, já que a viagem levaria horas, passando por várias cidades austríacas e tchecas. 
Para nossa surpresa, o veículo só parou uma ou duas horas mais tarde, na fronteira dos dois países, para que a imigração tcheca pudesse checar nossos passaportes e nos liberar para seguir viagem. Enquanto esperávamos pela devolução dos documentos, que foram levados para o interior do posto da alfândega, meu amigo começou a dar sinais de impaciência, suspeitando até que poderíamos ser presos sob alguma falsa alegação. Como não falávamos o idioma tcheco, nem sabíamos se os funcionários da imigração entendiam bem o inglês, imaginamos que havia mesmo o risco de termos problemas de comunicação, caso fosse necessário dar alguma explicação. Em pouco tempo, porém, nossos receios se mostraram infundados. Após devolver nossos passaportes, eles falaram alegremente de futebol e da Copa do Mundo, e nos desejaram uma boa viagem, além de sorte para a seleção brasileira. 
Um pequeno susto que logo substituímos por uma nova suspeita levantada pelo meu amigo. Após tantas horas de viagem cruzando o interior da República Tcheca, passando por cidades como Cesky Krumlov, Zlata Koruna e Tabor, será que estávamos sendo "sequestrados"? Bem, realmente, a viagem estava longe de parecer normal. Como um ônibus atravessa dois países com apenas dois viajantes, sem parar uma única vez para receber novos passageiros? É claro que eu mesmo não dei o menor crédito para isso, mas continuei um pouco intrigado com a situação. Meu amigo, que deve ter visto muitos filmes inspirados na Guerra Fria, resolveu fazer um teste com os possíveis algozes e pediu para parar numa posto de gasolina, alegando que queria ir ao banheiro e tomar um café. Para nosso alívio, o motorista prontamente atendeu, parando num posto de gasolina que mais parecia saído daqueles "road movies" americanos. Desembarcamos, fomos ao banheiro e nos dirigimos à loja de conveniência para tomar o tão aguardado café. Bem, até que tentamos, e com bastante insistência, mas o atendente de plantão naquele fim de mundo, acreditem, só conhecia uma frase em inglês, "we accept euros" (aceitamos euros). E repetia isso o tempo inteiro, apoiando as mãos no balcão. De nossa parte, dizíamos apenas "coffee", "coffee", mas ele não entendia nada. O fato é que saímos do estabelecimento sem conseguir beber o tão precioso líquido. Se não era um sequestro, como suspeitáramos antes, estávamos quase convencidos de que se tratava, pelo menos, de uma "pegadinha" internacional.
De volta à estrada, o ônibus seguiu viagem, mas já não estávamos tão receosos de nossos destinos. É óbvio que se houvesse alguma má intenção dos motoristas eles jamais teriam parado naquele posto de gasolina. Resolvemos, então, afastar os maus pensamentos, e passamos a apreciar a bela paisagem do país. Não demorou muito para que meu amigo resolvesse fazer uma nova solicitação. Levantou-se, foi ao encontro dos motoristas e perguntou se eles tinham café ou qualquer outra bebida para servir. O motorista substituto respondeu que café não tinha, mas cerveja sim, afinal, estávamos na República Tcheca, o país das mais famosas cervejas do mundo. Prontamente ele se dirigiu a um pequena geladeira localizada no meio do veículo, retirou de lá uma lata da Krusovice, tradicional cerveja tcheca (de mais de 500 anos!), e a entregou ao meu amigo, cobrando apenas 1 euro. Logo em seguida, indaguei se também havia água. Ele disse que sim e me deu a garrafa, mais uma vez ao custo de 1 euro. Pelo visto, tudo ali custava 1 euro. Se oferecêssemos 1 euro pelo próprio ônibus, desconfio que talvez desse pra levar o "possante".
Quando estávamos bem próximos da chegada a Praga, meu amigo "aprontou" outra vez, fazendo um novo e agora ousado pedido. Como éramos os únicos passageiros em toda a viagem, que durou quase 5 horas, ele resolveu abusar, solicitando ao motorista que nos deixasse na rua do hotel. E conseguiu! Ele parou bem próximo do local que indicamos, e ali descemos do ônibus, não sem antes agradecer aos dois pela gentileza, pela atenção e pela viagem "tranquila" que nos proporcionaram desde Viena. Mal sabiam, é verdade, de nossos suspeitas sobre suas reais intenções.
Para concluir, nos últimos anos, tenho ouvido falar muito da falta de preparo, e até da grosseria, dos tchecos ao receber os turistas. Realmente, mesmo em Praga, poucos falam inglês, porém, esse episódio, que guardo com muito carinho em minha memória, serve como um testemunho legítimo de como é possível encontrar pessoas gentis e amáveis em qualquer lugar do mundo. Aliás, a esse respeito, posso relatar diversos episódios ocorridos em minhas viagens que desautorizam a maioria dos clichês sobre a natureza e o temperamento dos europeus, incluídos aí os parisienses de tão má fama. Mas essas são outras histórias.

Praga