sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Livros, filmes e emoções



Após quase 30 anos do lançamento do filme, finalmente está disponível no mercado brasileiro o dvd de "Os Vivos e os Mortos" (1989), dirigido por John Huston em seu último trabalho para o cinema.
A produção é baseada em "Os Mortos", último conto da coletânea "Os Dublinenses", de James Joyce, publicada pela primeira vez em 1914, que se tornou uma das obras mais consagradas do escritor irlandês.  
Considero o trecho final do conto digno de constar das melhores antologias da literatura ocidental. O curioso é que, após várias leituras, percebi que a admiração que nutria pela obra de Joyce se devia, basicamente, à minha profunda empatia com o personagem Gabriel e suas inquietações. Com o passar do tempo, concluí que essa obra de Joyce revelava muito mais de mim do que eu supunha, sem contar que sua primorosa narrativa já havia me proporcionado momentos de verdadeiras epifanias, aquelas raras sensações de conexão direta com o Criador.
Para quem curte cinema e literatura, recomendo ambos, o filme e o livro, em qualquer ordem, porque, diferentemente do que costuma ocorrer com adaptações de obras literárias para o cinema, o filme também é belíssimo e só enaltece o trabalho de Joyce. 
O vídeo acima exibe a cena do filme baseada exatamente no trecho final do conto, transcrito abaixo.

"Gretta logo adormeceu.
Gabriel debruçou-se na cômoda e contemplou sem ressentimento os seus cabelos emaranhados, a boca entreaberta, ouvindo-lhe a profunda respiração. Então havia esse romance em sua vida: um homem morrera por ela. Quase já não o magoava pensar no pouco que ele, marido, representara em sua vida. Observava-a enquanto dormia, como se nunca houvessem vivido juntos. Seus olhos curiosos fitaram longamente o rosto e os cabelos, e ao pensar em como devia ser ela naquele tempo, no tempo da primeira juventude, uma estranha, sincera piedade pela esposa invadiu-lhe a alma. Não ousava dizer, nem para si mesmo, que seu rosto já não era belo, embora soubesse que já não era o rosto pelo qual Michael Furey afrontara a morte.
Talvez não lhe tivesse contado toda a história. Seus olhos moveram-se para a cadeira sobre a qual ela atirara algumas roupas. Um cordel da anágua pendia no chão. Uma bota estava em pé, o cano dobrado para baixo; a outra tombada de lado. Pensou no tumulto que o agitara uma hora antes. De onde surgira aquilo? Da ceia, do tolo discurso, do vinho, da dança, da brincadeira quando se despediam no vestíbulo, do prazer de passear pelo cais sobre a neve? Pobre tia Júlia! Ela também logo seria uma sombra junto às sombras de Patrick Morkan e seu cavalo. Surpreendera esse lúgubre presságio em sua face, quando ela cantava. Muito em breve, talvez, estaria sentado no mesmo salão, vestido de preto, o chapéu de seda sobre os joelhos. Os reposteiros estariam cerrados e tia Kate, sentada a seu lado, chorando e assoando o nariz, contar-lhe-ia como tia Júlia morrera. Revolveria o cérebro à procura de palavras que pudessem consolá-la e só diria frases fúteis e vãs. Sim, isso logo iria acontecer.
O ar gélido do quarto fê-lo estremecer. Deslizou cautelosamente sob as cobertas e acomodou-se ao lado da esposa. Um por um, estavam todos se transformando em sombras. Seria melhor precipitar-se na morte no apogeu de uma paixão do que extinguir e murchar lentamente com a velhice. Pensou como aquela mulher, adormecida a seu lado, ocultara por tantos anos a imagem do seu amado a afirmar-lhe que não queria viver. Pranto generoso invadiu-lhe os olhos. Nunca se sentira assim por uma mulher, mas sabia que isto era amor. As lágrimas cresceram nos olhos e ele imaginou ver na penumbra do quarto um jovem parado sob uma árvore encharcada. Outras formas pairavam ali. Sua alma acercava-se da região habitada pela vasta legião dos mortos. Pressentia, mas não podia apreender suas existências vacilantes e incertas. Ele próprio dissolvia-se num mundo cinzento e incorpóreo. O mundo real, sólido, em que os mortos tinham vivido e edificado, desagregava-se.
Leves batidas na vidraça fizeram-no voltar-se para a janela. A neve tornava a cair. Olhou sonolento os flocos prateados e negros que despencavam obliquamente contra a luz do lampião. Era tempo de preparar a viagem para o oeste. Sim, os jornais estavam certos: a neve cobria toda a Irlanda. Caía em todas as partes da sombria planície central, nas montanhas sem árvores, tombando mansa sobre o Bog of Allen e, mais para o oeste, nas ondas escuras do cemitério abandonado onde jazia Michael Furey. Amontoava-se nas cruzes tortas e nas lápides, nas hastes do pequeno portão, nos espinhos estéreis. Sua alma desmaiava lentamente, enquanto ele ouvia a neve cair suave através do universo, cair brandamente – como se lhes descesse a hora final – sobre todos os vivos e todos os mortos."


Transcrito de "Os Dublinenses", de James Joyce - Editora Civilização Brasileira

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