Sei que já contei essas histórias mil vezes (talvez mais!), mas agora é diferente. No próximo dia 04 de maio de 1995, minha primeira viagem completa exatamente 30 anos.
Para muitos pode até parecer trivial, mas, para mim, que mal havia saído do Rio (2 ou 3 vezes), e sempre acompanhado, viajar para a Europa por quase 1 mês, cruzando 5 países de trem e mochila nas costas, foi uma aventura que requereu bastante coragem.
Mas aprendi ali, e para o resto da vida, que o sonho (ou a esperança) sempre pode e deve vencer o medo. Foi essa lição preciosa que me levou a viajar muitas outras vezes nesses 30 anos.
Para rememorar uma parcela muito pequena daquela aventura, segue o relato das principais recordações da minha primeira viagem ao exterior:
- Rio - Lisboa, 04 de maio de 1995, quinta-feira:
Há 30 anos, eu embarcava para Lisboa em minha primeira visita à Europa.
Era o início de uma viagem de quase 1 mês visitando o velho continente. Depois de Portugal, eu ainda passaria por Espanha, França, Alemanha e Áustria. A jornada, de mochila nas costas, estava apenas começando!
A hospedagem foi na casa da amiga Tânia, em Parede, uma bela praia próxima do centro de Lisboa. No fim de semana, na companhia da Tânia, conheci os principais pontos turísticos da cidade.
- Lisboa, 08 de maio, segunda-feira:
Na Estação Santa Apolônia, embarque para Madrid, às 22:05h, utilizando, pela primeira vez, o EUROPASS, passe de trem adquirido no Brasil. Uma noite inteira dormindo numa cabine de trem com três estranhos, um chileno, um francês e um americano; uma verdadeira babel! Claro, cheio de medo de ser roubado, dormi abraçado à mochila e com os "travellers checks" (ainda em marcos alemães!) dentro da calça. Todo cuidado era pouco.
- Madrid, 09 de maio, terça-feira:
Chegada bem cedo à Estação de Chamartin.
Dali, eu faria uma conexão para Barcelona no "Talgo", o melhor trem espanhol da época, com previsão de 7 horas de viagem. Hoje, no AVE, o trem veloz espanhol, o trecho é percorrido em menos de 3 horas!
Tomei o café da manhã no bar da estação, um sanduíche de queijo acompanhado de um delicioso chocolate quente e cremoso, e embarquei um pouco antes das 11h. Próxima parada, Barcelona, e para uma missão muito especial, conhecer os primos espanhóis!
Durante o percurso, desfrutando da paisagem do interior do país, fiquei pensando na responsabilidade de ser o primeiro brasileiro a visitar a família da Espanha após 6 décadas. E sem saber falar espanhol ou catalão, um desafio e tanto para quem fazia a primeira viagem ao exterior e mal tinha saído do Rio.
O combinado é que a prima e o marido me pegariam na estação às 18h, horário previsto para a chegada. Achei que caberia a mim reconhecê-los por uma foto que enviaram (pelo correio!) duas ou três semanas antes. Foto que eu, "lesado", não levava comigo!
Mas deu tudo certo, Elisa e Aquilino, seu saudoso marido, é que me reconheceram. Depois dos ainda tímidos sorrisos e cumprimentos, pegamos o metrô e fomos para sua casa, onde pudemos conversar com calma, resgatando ali os laços familiares praticamente perdidos após décadas de separação.
Aquele encontro e o reatamento das relações com a família espanhola estão entre os meus maiores motivos de orgulho na vida. Nada paga a experiência de ter sido o responsável por essa reaproximação dos dois ramos (Brasil e Espanha) da família Saeta.
Anos mais tarde, em 2003, em visita aos primos na Galícia, tive a oportunidade de conhecer uma prima cubana, descendente de um dos primos do meu pai que emigraram para Cuba. Mas essa é uma outra história!
- Barcelona, 11 de maio, quinta-feira:
Era o terceiro dia na cidade que é símbolo do modernismo na Espanha. Visitei vários museus, em especial a Fundação Joan Miró e o surpreendente Museu Marítimo, dotado de um acervo riquíssimo que inclui réplicas de embarcações da "Era dos Descobrimentos", no século XVI.
Mas acho que o melhor de Barcelona está mesmo a céu aberto, em especial a "Ciutat Vella" e seu "Barri Gotic" repleto de ruas medievais estreitas e preservadas.
O porto, ou "Port Vell", totalmente remodelado para a Olimpíada de 1992, é outra atração imperdível da cidade, principalmente à noite, com bares, restaurantes e o cinema IMAX.
A coisa mais curiosa que eu vi em Barcelona foi o "rush" nos transportes na hora do almoço. Muitos faziam essa refeição em casa, como o próprio marido da minha prima, lotando o metrô no meio do dia. Boa parte, presumo, ainda tirava a sesta antes de retornar ao trabalho.
- Barcelona, 14 de maio, domingo:
Domingo de GP da Espanha de F1 no circuito de Montmeló, cidade da Catalunha bem pertinho de Barcelona. Depois de uma estada de quase uma semana, chegava o dia de me despedir dos primos espanhóis, que conheci justamente naquela viagem.
Logo cedo, saí para o último passeio, combinando que voltaria ao meio-dia para o almoço de despedida. Mas cheguei em cima da hora marcada porque Barcelona estava com vários bloqueios, incluindo o fechamento de algumas estações de metrô, o que me obrigou a pegar ônibus pela primeira (e única) vez na cidade. Tudo por conta do GP de F1.
Após o almoço, conversamos bastante e tiramos algumas fotografias como lembrança do (re)encontro da família, passados mais de 60 anos. Em seguida, o primo Martin me levou à Estação de Sants, onde eu embarcaria para a França no final da tarde. O dia estava lindo e o desafio que se apresentava para os próximos dias era conhecer Paris sem falar uma única palavra em francês. Mas foi falando inglês que me livrei de dormir na rua logo na primeira noite.
As boas recordações de Barcelona e dos primos espanhóis eu guardaria para sempre. Era o início de uma relação de amizade que se consolidou ao longo dos anos e da qual muito me orgulho até hoje.
A convite dos primos, retornei à Espanha outras vezes para passar férias na Galícia, terra da minha saudosa avó Evangelina. Uma experiência que me permitiu reunir ricas impressões não só dos primos, mas também do povo espanhol e do próprio país, que aprendi a amar!
Ainda naquela noite, na estação de Portbou, uma cidadezinha bem próxima da fronteira com a França (1000 habitantes), testemunhei o desembarque de uma família (casal com 3 crianças e dois adolescentes). Com olhar curioso, acompanhei cada um saltar do trem e a emoção com que todos se dirigiam a um casal de idosos, talvez avós, que os esperava na plataforma. Entre beijos e abraços "infindáveis", percebi uma das crianças, uma garotinha de uns 4 ou 5 anos, virar-se para o trem ainda a tempo de acenar timidamente para mim, ao que, surpreso, retribuí em seguida.
Sim, ela deve ter percebido minha curiosidade com a família e, em sua inocência, espontaneamente resolveu "se despedir" daquele estranho com um aceno e um doce sorriso. Uma cena que carregarei comigo pelo resto da vida.
- Lyon, França, 15 de maio, segunda-feira:
A caminho de Paris, desembarquei em Lyon, por volta das 6 da manhã, após uma viagem noturna desde Barcelona, atravessando os Pirineus, cordilheira que serve de fronteira natural entre Espanha e França.
Fazia uma manhã muito fria, e a expectativa era grande para viajar no famoso TGV francês. O trem sairia às 7h e a chegada a Paris estava prevista para as 9h. O EUROPASS, passe de trem comprado no Brasil, dava direito a um assento na primeira classe, com a condição de que eu fizesse a devida reserva de lugar ainda na estação, o que providenciei assim que cheguei.
Antes do embarque, no subsolo da estação, tomei um café bem forte no subsolo da estação e comprei o "El País", jornal espanhol que conheci durante a estada em Barcelona.
Já na plataforma e vestido com vários casacos, aguardei ansiosamente pelo TGV, ao lado de dezenas de executivos com suas vistosas pastas (não era tempo de notebooks e muito menos de smartphones).
Uns dez minutos antes das 7, o trem se aproximou da estação. Fui um dos primeiros a embarcar e procurei logo o assento reservado. Depois de colocar a mala no compartimento superior, finalmente me acomodei e relaxei. Em questão de minutos, o vagão estava lotado. Todos, a maioria homens, impecavelmente vestidos e só eu ali (que eu me lembre) de calça jeans, tênis e mochila. O trem partiu na hora certa e, com uma sensação de "peixe fora d'água" (ou penetra), segui viagem em direção a Paris, onde chegaria sem hotel reservado. "De mala e cuia", perambulei um pouco pela cidade até conseguir a hospedagem num simpático albergue da juventude afastado do centro, mas perto da estação de metrô.
- Paris, 17 de maio, quarta-feira:
Champs Elysées tomada por policiais e bandeiras da França.
Naquela tarde ensolarada de primavera, depois de 3 dias visitando pela primeira vez Paris, eu seguiria viagem para Stuttgart, na Alemanha. Saindo do Louvre em direção à Gare de L'est para pegar o trem, vislumbrei a mais famosa avenida da cidade em festa. Achei tudo muito bonito, mas não me dei conta do que estava acontecendo. Somente ao embarcar no trem e ocupar o meu lugar pude, finalmente, descobrir o motivo do clima festivo e colorido em Paris. Uma edição do "Le Monde" abandonada no assento ao lado estampava na capa a notícia da posse de Jacques Chirac como presidente da França justamente naquele dia.
Começava ali a trajetória de Chirac como líder máximo da França e também minha paixão por Paris, cidade que eu teria a oportunidade de visitar outras vezes no futuro.
- Plochingen, Alemanha, 18 de maio, quinta-feira:
Visita a Plochingen, a 19 km de Stuttgart, capital do estado de Baden-Württemberg, na Alemanha.
Minha amiga alemã, professora de música, me levou para conhecer essa pequena cidade (13 mil habitantes), enquanto ela dava aula na casa de um aluno. Era uma quinta-feira, dia útil, mas parecia feriado. Não se via quase ninguém nas ruas.
De tanto circular pelo local, entrando e saindo das mesmas e poucas lojas, achei que alguém poderia chamar a polícia para verificar quem era aquele forasteiro que perambulava sem destino pela cidade. Um turista perdido no interior da Alemanha? Nem eu acreditaria nessa história, daí o meu receio de ter que explicar a situação para um policial, e sem falar uma única palavra em alemão.
Para evitar isso, e depois de tomar uma Coca-Cola no único bar que encontrei, resolvi me afastar do centro e acabei descobrindo, talvez, a melhor atração da cidade, o complexo residencial projetado pelo arquiteto austríaco Friedensreich Hundertwasser. O estilo é bem incomum, mas se assemelha bastante às obras de Gaudí, em Barcelona, criadas pelo artista catalão bem antes de Hundertwasser vir ao mundo. Em Viena, há outra outra edificação do mesmo estilo também projetada pelo arquiteto austríaco.
Embora, depois disso, tenha visitado a Alemanha outras vezes, nunca mais voltei a Plochingen. E também nunca mais, em minhas viagens, tive o receio de ser visto como uma "ameaça" e não como um turista comum. Foi um sentimento bobo de alguém que fazia sua primeira viagem ao exterior, mas que, como tudo que vivi, deixou saudade.
- Stuttgart, Alemanha, 18 de maio, quinta-feira:
Em meu primeiro dia na cidade, após retornar de Plochingen, pude acompanhar uma aula de música para crianças no castelo mais antigo de Stuttgart, que remonta ao século X. Passeando pelo centro histórico, não demorou muito para perceber uma grande diferença em relação às cidades que eu havia conhecido em Portugal, Espanha e França. A arquitetura de Stuttgart, como ocorre em boa parte da Alemanha, exibe fortes contrastes por conta dos bombardeios dos aliados na II Guerra. Como cicatrizes do conflito, pouca coisa permanece em seu estilo original no centro da cidade, com exceções "honrosas" como os castelos novo e velho (ou antigo) e o teatro, tudo próximo à praça principal.
De qualquer forma, se consolidava ali (eu já gostava da Alemanha desde adolescente por causa da música clássica!) minha paixão pelo país de Beethoven, Bach, Wagner, Schumann, Goethe, Heine, Thomas Mann, Schiller, Marx, Nietzsche e de tantos outros gênios da música, da literatura e da filosofia. Um país protagonista dos piores conflitos da história contemporânea, e sempre do lado errado, mas também berço dos maiores artistas e intelectuais produzidos pela nossa civilização. Uma enorme contradição que me seduziu justamente por oferecer uma síntese perfeita da própria natureza humana.
- Salzburg, Áustria, 21 de maio, domingo:
"Churrasco" às margens do rio Salzach, em Salzburg, terra de Mozart e também da "Noviça Rebelde".
Era o aniversário de 8 anos do pequeno Aaron, filho de Susie, a amiga austríaca que me hospedou. Antes da festa, que seria à noite, ela resolveu fazer um churrasco "petit comité" à tarde para a família e o convidado brasileiro.
Na beira do rio, depois de uma meia hora, não mais que isso, comecei a sentir muito frio, mas ninguém ali parecia incomodado com a súbita queda da temperatura, nem as crianças.
No dia seguinte, um domingo ensolarado, bem cedinho fui conhecer o centro histórico de Salzburg e a casa de Mozart, passeando também pelas locações do filme "A Noviça Rebelde" na cidade. Antes de tudo isso, pude assistir ao final de uma missa na catedral, ao som (ao vivo) de uma obra de Mozart, com a participação de um lindo e bem-ensaiado coral infantil. Inesquecível!
- Heidelberg, Alemanha, 24 de maio, quarta-feira:
Chegada a Heidelberg (Alemanha) pela primeira vez. A visita não estava programada em meu roteiro original, mas acabei indo lá a convite da Cristina, uma brasileira que já vivia na cidade e que se tornaria, ao longo dos anos, uma das minhas melhores amigas.
Após o encontro na estação de trem, aproveitamos aquela bela manhã de primavera para passear pelo centro histórico de Heidelberg e sua "hauptstrasse" (rua principal reservada apenas para pedestres). Fiquei encantado com tudo que vi e principalmente com a atmosfera que dominava cada cantinho da cidade, sede da mais antiga universidade alemã (1386), frequentada por jovens universitários das mais diversas origens e culturas.
Havia também um castelo de 800 anos, pequenas livrarias de arte, sebos repletos de "novidades", bares e restaurantes centenários (com até 500 anos!), enfim, um sem-número de atrações que tornavam Heidelberg um lugar único.
À noite, fomos a um show da cantora sul-africana Miriam Makeba, aplaudida de pé no final, com seguidos pedidos de bis por um ginásio lotado!
Ali, Heidelberg me conquistava para sempre. O fato é que visitei outras vezes os amigos alemães. Com eles, já cruzei boa parte da Europa, incluindo Alemanha, França, Holanda, Itália, Luxemburgo, República Tcheca, Eslováquia, Hungria, Liechtenstein, Suíça, Áustria, Eslovênia, Croácia e Bósnia e Herzegovina, de carro, de trem e de avião, descobrindo aldeias históricas, cidades milenares e culturas distintas.
Uma experiência rica, incrível e inesquecível pela qual nenhum dinheiro paga!
- Stuttgart, Alemanha, 26 de maio, sexta-feira:
Às 6h da manhã, eu pegava o trem em direção a Lisboa, com conexões em Paris e em Irun, no norte da Espanha. Até chegar à capital portuguesa, foram 32 longas horas cruzando parte da Alemanha, da França, do norte da Espanha e também de Portugal. Uma jornada cansativa e resultado do equívoco de ter comprado o bilhete aéreo Rio-Lisboa-Rio e não Rio-Lisboa-Frankfurt-Rio. Coisa de "mochileiro" de primeira viagem.
- Coimbra, Portugal, 30 de maio, terça-feira:
Após retornar a Portugal, reservei o meu último dia do passe de trem para conhecer Coimbra.
O dia estava lindo e a expectativa de conhecer uma das mais tradicionais e antigas cidades universitárias do mundo, fundada no século XIII, se confundia (ou misturava) com a emoção de estar prestes a visitar a cidade natal do meu avô José Maria, que faleceu quando eu não tinha nem 10 anos.
Quando cheguei à cidade, por volta das 2 e meia da tarde, a primeira coisa que fiz foi procurar por um restaurante para almoçar. Pelo avançado da hora, a maioria já estava fechada. Por sorte, encontrei um aberto bem no centro histórico, embora, àquela altura, só os próprios funcionários (garçons/garçonetes) é que ainda almoçavam.
Ao me ver entrar, uma garçonete de meia idade parou de comer, se levantou e se dirigiu a mim. Um pouco envergonhado, perguntei se, naquele horário, ainda serviam refeições. Com a resposta afirmativa, resolvi pedir um prato comum, do qual, para ser sincero, já nem me lembro mais.
Durante a refeição, por curiosidade, perguntei à mesma senhora em que consistia o tal "bacalhau com natas" que constava no menu. Gentilmente, ela me explicou os ingredientes e, para minha surpresa, foi até a cozinha e pouco depois retornou com o referido prato, segundo ela, apenas para degustação, portanto, uma oferta da casa!
Embora já estivesse satisfeito com o prato que havia comido momentos antes, experimentei e realmente gostei do então misterioso "bacalhau com natas". Apreciei mais ainda a simpatia e a generosidade daquela senhora que, interrompendo sua própria refeição, atendeu um turista brasileiro retardatário, esfomeado e "ignorante", e ainda lhe ofereceu gratuitamente um dos principais pratos da casa para experimentar. Uma das lições de vida que não aprendemos nos livros!
- Lisboa, 31 de maio, quarta-feira:
Embarque no voo 703 da Varig, com destino ao Rio de Janeiro.
No caderno de anotações da viagem, registrei:
- A Europa agora é passado...o significado dessa viagem eu só saberei com o tempo.
Naturalmente, eu não fazia ali a menor ideia da revolução que aquela experiência provocaria na minha vida. Aliás, meu falecido tio Osmário, que passou a vida viajando, dias antes do meu embarque, ao me encontrar na Saens Pena, já havia me prevenido, "se prepare, depois da primeira viagem, virão outras, outras e outras...".
Santa e abençoada "premonição"!!