quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

Wagner, Telarc e a "senhorinha" traída pela memória

Lorin Maazel gravou uma seleção, realizada por ele, de trechos orquestrais ("without words") de duas célebres óperas de Richard Wagner (fotos).
Procurei por anos o cd com "Tannhauser" e encontrei hoje na loja Allegro Discos. A gravação não recebeu críticas muito favoráveis na época do lançamento, em 1991, mas, como se trata de Wagner, eu precisava ter em minha coleção.
O cd do "Ring without words", reunindo excertos das quatro óperas do ciclo, eu já havia adquirido há muitos anos. A compra desse disco, no início dos anos 1990, quando o mercado de cds ainda engatinhava no Brasil, tem uma história peculiar, que eu conto a seguir.
Na época, já colecionador de discos clássicos, eu frequentava bastante as lojas de discos "Gramophone", no Centro do Rio e no Shopping da Gávea. Eram lojas para iniciados, oferecendo os últimos lançamentos do mercado internacional.
A loja do Centro, minha preferida, ficava no final de uma galeria na Sete de Setembro, quase esquina com Rio Branco. O ponto nobre, pra mim, era o subsolo, que abrigava a extensa seção de clássicos.
Havia, então, uma senhorinha, já idosa, que devia trabalhar ali há séculos e que sabia tudo sobre o gênero, desde compositores e obras até regentes e gravadoras especializadas. Uma vendedora como poucas na época ou em qualquer tempo. Era só perguntar sobre a obra desejada e já vinha ela com a informação completa, indicando os títulos disponíveis, as orquestras e os regentes. Era infalível (ou quase!).
Houve uma vez, porém, que a surpreendi num episódio curioso que nunca mais esqueci. Perguntei se a loja tinha o disco com a Filarmônica de Berlim, sob a regência de Lorin Maazel, com obras de Wagner. O detalhe que a desconcertou foi que eu disse que a gravadora era a americana "TELARC", especializada em coletâneas de obras mais "leves" e populares do repertório clássico. Confesso que, também pra mim, Wagner com a Filarmônica de Berlim era algo realmente estranho à "TELARC", mas não havia dúvida porque eu tinha lido sobre o lançamento do cd numa revista.
Assim que acabei de falar, ela afirmou enfaticamente que seria impossível a TELARC deter os direitos de venda de uma gravação com a Filarmônica de Berlim, mas se dispôs a me acompanhar até a seção destinada a Wagner. Para sua surpresa (e decepção), estava ali, logo no início da fila de cds, justamente o referido disco. Ela reagiu com um leve e sutil sentimento de "derrota", embora estivesse concretizando uma venda importante porque o cd era importado e caro! Por que não sabia do lançamento é algo que nunca entendi. Um provável lapso do qual ela mesma nunca deve ter se perdoado.


O mundo tomou um atalho...

Talvez não haja precedente na história do enorme retrocesso que a extrema direita tenta impor ao mundo, "ressignificando" conceitos e valores que levamos séculos para consolidar.
Aliados históricos são tratados como adversários; familiares e amigos de longa data passam a não se "reconhecerem" por suas ideias; diferenças étnicas e culturais voltam a ser tratadas como ameaças...
Conceitos como ética, moral e respeito mútuo deixam de balizar/nortear relacionamentos pessoais, institucionais e internacionais.
Enfim, tudo que o milenar processo civilizatório nos legou é agora combatido com hostilidade e até violência pelos novos detentores do poder, devidamente legitimados por eleições livres e democráticas.
Vivemos atualmente uma verdadeira revolução política e cultural. Onde vai dar isso, eu não sei, mas me assusta porque o mundo onde fui criado e educado vai, aos poucos, deixando de existir. A estrada (de valores) que percorri por toda a vida, e também percorrida por meus antepassados mais recentes, a cada dia parece levar a "lugar nenhum".
Como diz o título de um documentário sobre o regente Carlos Kleiber: "I am lost to the world"...


Um papa de seu tempo

É curioso como são semelhantes as histórias de levas de imigrantes europeus pobres que aportaram no continente americano entre os séculos XIX e XX.
Navios abarrotados de gente fugindo da pobreza, em meio a péssimas condições sanitárias e doenças...
A história de muitos de nossos antepassados é a história de verdadeiros "sobreviventes". É a história de gente que jamais perdeu a esperança, ou para quem só restava mesmo a esperança, depois de deixar "tudo" para trás.
Após tanto tempo, é possível dizer que muitos de nós somos filhos, netos ou bisnetos da "esperança", a exemplo do próprio Papa.







A coragem (e o preço) de dizer NÃO!

 

O filme "Napola" relata a trajetória de Friedrich, um jovem alemão de 16 anos, que, contrariando o pai, resolve se inscrever numa escola militar, com o objetivo de garantir seu futuro.
Sensível e avesso às ideias nazistas, Friedrich enfrenta dificuldades para se adaptar ao rígido e desumano regime escolar, o que lhe traz sérios problemas.
É possível dizer que o mal que Hitler fez à Alemanha só não foi maior do que a barbárie que produziu contra judeus e minorias no período da II Guerra.
Não há registro na história moderna de um povo que tenha sido tão vil, bárbaro e desumano com os inimigos e com os próprios nativos opositores.
Na Alemanha nazista, corrompidos pelo regime, filhos delataram pais, vizinhos entregaram vizinhos e até pais, como mostra o filme, sacrificaram filhos em nome de uma infame ideologia supremacista.
Estou convencido de que, ainda por mil anos, gerações seguidas de alemães carregarão as cicatrizes dos ferimentos físicos, morais e espirituais provocados por aquele homem/fera e seus seguidores.
Por outro lado, outra grande tragédia nessa história toda é que, até hoje, quase 80 anos depois, à exceção dos casos isolados de atentados a Hitler já explorados pelo cinema, o mundo praticamente não tomou conhecimento daqueles alemães anônimos que perderam a própria vida na "resistência" diária ao nazismo. Homens e mulheres que lutaram pela herança de Beethoven, Bach, Brahms, Kant, Schopenhauer, Goethe, Nietzsche e tantos outros compatriotas que contribuíram para nosso processo civilizatório.

A voz esquecida de Maria Anderson

Em evento histórico, na Páscoa de 1939, nos degraus do Memorial Lincoln, onde assombrou a todos cantando "My country, 'tis of thee", ela foi reverenciada pelo presidente Franklin Roosevelt e Eleanor, a primeira-dama.
Mais tarde, nas melhores salas de concerto da Europa, incluindo Alemanha, Áustria, União Soviética e Finlândia, foi ovacionada pelo público com incontido entusiasmo.
Certa vez, Toscanini se referiu a ela como "o tipo de cantora que só aparece uma vez a cada 100 anos".
Sibelius a recebeu na Finlândia dizendo:
- Meu teto é baixo demais para você!
Mais recentemente, em 2009, na festa da posse de Obama, a pedido do presidente eleito, Aretha Franklin cantou "My country, 'tis of thee" no mesmo Memorial Lincoln do evento da Páscoa de 1939, diante de 2 milhões de pessoas.
A despeito de tudo isso, ao longo da carreira, ela foi proibida de se hospedar em hotéis e rejeitada por professores de canto.
Em Birmingham, durante a II Guerra, foi impedida de permanecer no saguão da estação de trem enquanto o pianista alemão Franz Rupp lhe comprava um sanduíche.
Ela foi Marian Anderson (1897-1993), negra, pobre e uma das mais belas vozes de todo o século XX.
Você já ouviu falar de Marian Anderson?
Certamente nem eu nem você nem a maior parte do povo norte-americano ao longo dos últimos 100 anos.



A arte a serviço da fé em Deus e nos homens

 

Terrence Malick é, provavelmente, o cineasta que mais fala ao meu coração (ou ao meu espírito!).
Em "A Árvore da Vida" (2011), Malick apela predominantemente para os sentidos, o que pode provocar alguma resistência no início, mas oferece muito a quem se dispõe a empreender a "viagem" até o fim.
Ao longo de décadas, assisti a pouquíssimos filmes que tivessem abordado com tamanha profundidade e fidelidade as sensações mais familiares à minha experiência de vida ou à maneira como percebo o mundo e minha própria existência!
Já "Uma Vida Oculta" (2019), último filme do diretor, sugere uma reflexão a respeito da vulnerabilidade humana, das condições físicas e morais às quais estamos submetidos nas relações de poder e do que cada um de nós faz ou deixar de fazer para o bem ou para o mal prosperar.
Ouso afirmar, ainda, que Malick reitera em seus filmes a importância da fé, da integridade, do afeto e, em última instância, do AMOR em nossa jornada nesse mundo.
Homem de profunda fé cristã, o cineasta dedicou sua vida e sua arte a prestar contas com Deus. E nos inspira a fazer o mesmo!
Terrence Malick, com 80 anos, tem uma curta filmografia, apenas 11 filmes, mas integra o pequeno grupo de cineastas que ousaram "desafiar" a indústria, fazendo carreira à margem do gosto popular.

O preço de ser fiel a si mesmo

 

Nesse belíssimo filme, Terrence Malick nos coloca na pele de um fazendeiro austríaco que se recusa a jurar lealdade a Hitler durante a II Guerra. Casado e pai de duas meninas, o personagem sofre pressão de todos os lados (à exceção da jovem e corajosa esposa), especialmente da cunhada, de amigos e do próprio bispo local, para assinar o juramento, mas, por profundas convicções religiosas e morais, se recusa terminantemente a fazê-lo, sob o risco até de ser executado.
Os que o amavam lhe pediam apenas o "razoável" para salvar a própria vida, assinar um mero papel e esquecer tudo, mas o que parecia tão simples para eles lhe era totalmente inaceitável, intolerável. Uma verdadeira infâmia!!
É um filme que sugere uma profunda reflexão a respeito da vulnerabilidade humana, das condições físicas e morais às quais estamos submetidos nas relações de poder e do que cada um de nós faz ou deixar de fazer para o bem ou para o mal prosperar.
Ouso afirmar, ainda, que Malick reitera em seus filmes a importância da fé, da integridade, do afeto e, em última instância, do AMOR em nossa jornada nesse mundo.
Homem de profunda fé cristã, o cineasta dedicou sua vida e sua arte a prestar contas com Deus! E nos inspira a fazer o mesmo!

Entre a civilização e a barbárie

"Senhor das Moscas", clássico romance de William Golding sobre a natureza humana, conta agora com uma versão "em quadrinhos" no mercado nacional, embora esteja longe de ser um obra destinada ao público infantil.
Na obra de Golding, depois da queda de um avião no mar, um grupo de adolescentes consegue alcançar uma ilha deserta, sem haver, porém, perspectiva imediata de resgate. Com o passar do tempo, cada um passa a contar apenas com o próprio instinto para sobreviver, sem a interferência dos adultos, mortos no acidente (apenas um tripulante sobreviveu algumas horas na ilha).
É claro que os conflitos não demoram a aflorar. A maioria dos garotos faz uso crescente da violência na defesa de seus interesses, com a intimidação sistemática dos mais fracos e suscetíveis. Alguns poucos lutam para manter os mais nobres valores da civilização (solidariedade, compaixão etc.), pagando um preço altíssimo por isso.
No geral, é possível afirmar que o autor defende a tese de que a natureza humana seja irremediavelmente selvagem e que a fronteira entre o bem e o mal, entre a civilização e a barbárie, seja tênue e não resista a situações-limite.
Conheço e recomendo o romance em sua versão original, e até as adaptações já realizadas para o cinema, em especial a de 1990. Quanto a essa nova e "ousada" versão em quadrinhos, encontrei boas críticas na internet ressaltando a fidelidade ao texto de Golding, mas é preciso conferir.


Um verdadeiro curso de pintura espanhola ao longo dos tempos

 

O livro à esquerda aborda a pintura espanhola no chamado "Siglo de Oro" (Velasquez, El Greco, Zurbarán, Murillo etc.), entre os séculos XVI e XVII, quando houve um florescimento das artes e da literatura na Espanha.
Meu pintor favorito no período é El Greco (1541-1614), de origem grega, com seus personagens de olhos expressivos e corpos alongados. Único e genial, assim como a arquitetura modernista de Antoni Gaudí (1852-1826), três séculos depois.
Gosto dos artistas que revelam um olhar singular sobre a realidade. Muitas vezes pagam um alto preço por isso, mas o futuro quase sempre lhes faz justiça!
O outro livro amplia a cobertura da história da pintura na Espanha, compreendendo o período do século XVII ao início do século XX.
A capa é ilustrada com uma obra belíssima do valenciano Joaquín Sorolla (1863-1923), talvez o maior representante do impressionismo espanhol, cujo museu conheci em minha última visita a Madrid.
Os dois livros cobrem mais de 4 séculos da pintura espanhola. Um verdadeiro curso sobre uma arte que ajuda a contar a própria história do país.

A primeira impressão...

Minha primeira relação com o cinema foi de "ódio à primeira vista"!
A empregada lá de casa pediu e minha mãe concordou que ela levasse as crianças (meus irmãos e eu) para assistir "A Noviça Rebelde". Eu tinha apenas 6 anos e não entendi absolutamente nada daquela "história sem fim" sobre uma família rica e numerosa que gostava de música e vivia num lugar bonito e distante. Música folclórica austríaca, nazismo e perseguição política (embora vivêssemos aqui numa ditadura) eram temas alheios à minha realidade infantil. Depois de três horas sentado numa sala escura e sem poder falar ou levantar, eu aprendi, na mais tenra idade, o verdadeiro significado de "tortura".
Com o trauma do primeiro "encontro", o cinema só viria a me conquistar muitos anos mais tarde, quando, já adolescente, assisti a "Houve Uma Vez Um Verão", de Robert Mulligan.
A história nostálgica de um rapaz da minha idade apaixonado por uma mulher madura e comprometida, um belo rito de passagem, mexeu comigo como poucas vezes aconteceu no cinema em toda a minha vida.